Na nossa rotina ultrassonográfica de exames abdominais, temos vários achados ultrassonográficos que por não remeterem à clínica que o paciente apresenta naquele momento, tornam-se subestimados e muitas vezes são negligenciados tanto pelos tutores quanto pelos clínicos responsáveis.
Parte disso pode estar em nós mesmos, ultrassonografistas, na hora de nos referirmos verbalmente sobre os achados, os diminuindo, como dizer que estamos observando "só uma infiltração gordurosa", "só um nódulo no baço", "só uma gordura na cortical renal do gato".
Devemos lembrar que diminuir os achados é diminuir o nosso próprio exame, ou seja, seu trabalho e seu esforço. Além do que, estes mesmos achados podem evoluir e não serem uma coisa tão simples como parecia.
Então, prepare-se para retirar a palavra 'só' do seu vocabulário e vamos observar alguns achados que não são só o que parece.
hiperecogenicidade cortical renal em felinos é só gordura?
As espécies apresentam metabolismos diferentes e formas diferentes de armazenar energia, como acontece com a gordura. Em nosso exame ultrassonográfico abdominal, é comum observarmos como depósito de gordura nos felinos a gordura falciforme (geralmente, mais abundante quando comparada proporcionalmente aos caninos), a camada submucosa gástrica (mais espessa que, proporcionalmente observamos nos caninos) e, na cortical renal, deixando-se mais hiperecóica que o habitual.
Nos felinos (sobretudo em machos castrados) ocorre uma deposição celular de lipídeos nas células dos túbulos contorcidos proximais. Essa deposição é hormonalmente dependente e não sabemos até agora as consequências fisiológicas dessa alteração, tanto que é comum observarmos um questionamento, de ultrassonografistas e clínicos, se isso realmente é uma alteração. E sim, para nós, ultrassonografistas, a hiperecogenicidade da cortical renal é uma alteração!
Primeiro, por não haverem estudos suficientes que, mesmo que a longo prazo, esse depósito de lipídeos não gere outros tipos de lesões renais, uma vez que sabemos que a gordura é naturalmente agente inflamatório e, segundo que, não temos como, ultrassonograficamente, afirmar que essa hiperecogenicidade seja apenas gordura, pois pode ser outro tipo de alteração cortical ou até mesmo, uma sobreposição de infiltrado gorduroso e outras lesões renais.
Então, mesmo que um felino esteja saudável e a única alteração ultrassonográfica observada seja a hiperecogenicidade da cortical renal, não é só gordura.
é só um 'rinzinho' crônico
"Mas ele é velhinho mesmo, é só uma nefropatia da idade..." ou "ah, mas ele é Shih Tzu" e assim o paciente assintomático se torna em alguns anos, ou meses, um nefropata crônico. Os achados renais em animais idosos ou em pacientes com predisposição racial para nefropatias são muito subestimados em nossa rotina. Já é sabido que o rim normal, é normal ao exame ultrassonográfico, seja ele um SRD, um Shih Tzu, um Lhasa Apso ou um Rottweiler, o normal é ser normal.
A nefropatia crônica discreta observada no ultrassom é bastante subestimada (principalmente nas raças pequenas como Shih Tzu e Lhasa Apso) sobretudo nos pacientes assintomáticos e não-azotêmicos e, é assustador como os clínicos e tutores resolvem prestar atenção nestes pacientes apenas quando estes apresentem sintomatologia ou se tornem azotêmicos.
Devemos lembrar que a azotemia de origem renal só acontece quando aproximadamente 70% dos néfrons tornaram-se afuncionais e, se você subestimou um achado ultrassonográfico de nefropatia e, começou a classificar o paciente como nefropata apenas quando ele tornou-se azotêmico, devo dizer que você falhou miseravelmente.
Os achados de imagem renais (sejam ultrassonográficos ou de outros exames, como radiografia, tomografias ou ressonância) são suficientes para inserir o paciente na classificação I da IRIS e, por mais discreto que o achado ultrassonográfico seja, sua impressão diagnóstica deve incluir o tipo de ultrassonográfico de nefropatia observado, para alertar o tutor e o clínico quanto a esta situação.
é só uma infiltração gordurosa hepática, discreta
Aqui, um achado ultrassonográfico muito subestimado: a infiltração gordurosa hepática. "Ah, mas ele é gordinho mesmo", "ah, mas é só uma infiltração gordurosa discreta". Devemos lembrar que a infiltração gordurosa, hepatopatia vacuolar, esteatose hepática geralmente é secundária a uma origem hormonal (como hipercorticolismo e diabetes mellitus) e até mesmo uma síndrome hepatocutânea (ou seja, esse achado deve ter sua origem investigada). A gordura por si só, é um agente inflamatório, predispondo esse parênquima hepático a processos inflamatórios (muitas vezes recorrentes e clínicos ou subclínicos) e já é estudado que em algumas espécies (cão, rato e ser humano) a gordura hepática sofre metaplasia, desencadeando também em neoplasia (hepatocarcinoma, neoplasia maligna hepática). Essa evolução não é dependente do grau de infiltração gordurosa.
Sabendo disso, logo percebemos que não é só uma infiltração gordurosa. O ideal ao diagnosticarmos este achado é alertar sobre a necessidade da histopatologia hepática (para graduar a infiltração e o nível da estrutura celular, diferenciar se há displasia ou neoplasia associada ou até mesmo, sobreposição de outra patologia hepática que não esteja sendo identificada pela hiperecogenicidade e atenuação de feixes ultrassonográficos, característicos da infiltração gordurosa) e a investigação de sua origem.
Além disso, o estudo Doppler hepático é recomendado, uma vez que a morfologia da onda hepática direita auxilia na graduação da infiltração gordurosa, sendo capaz de caracterizar de maneira objetiva entre graus discreto, moderado e acentuado (sendo então, essencial para o monitoramento) e investigar a possibilidade de hipertensão portal (condição comum em grande parte das hepatopatias crônicas). E você sabe o que acontece em casos de hipertensão portal né? Formação de shunts adquiridos!
Portanto, vamos dar à infiltração gordurosa (mesmo que discreta) sua real importância e nunca mais dizer que é só uma infiltração gordurosa.
é só um sedimento biliar, discreto...
Por algum tempo, de maneira equivocada, alguns ultrassonografias chegavam a comentar que o jejum alimentar era o suficiente para gerar pontos ecogênicos e até sedimento na vesícula biliar nos cães. Hoje sabemos que o jejum por si só não é suficiente para promover tal alteração e sim, que seria necessário uma anorexia relativamente prolongada (de alguns dias) para haja sedimento biliar sem a necessidade de que esteja relacionado a uma alteração propriamente dita da vesícula biliar. Portanto, o sedimento biliar deve ser sim investigado, pois algumas vezes é o único (ou primeiro) achado observado nos casos de colecistite.
neste post você aprende a graduar o sedimento biliar
Outro achado subestimado na vesícula biliar é a hiperplasia mucinosa, que geralmente precede à mucocele. A hiperplasia mucinosa ocorre na tentativa das células produtoras de muco da vesícula biliar em fluidificar a bile, ou seja: essa bile provavelmente está mais densa que o normal.
clique aqui para aprender sobre a progressão da hiperplasia mucinosa para a mucocele
é só uma hérnia
As hérnias são achados comuns na nossa rotina e talvez, dos mais subestimados. Isso por serem algumas vezes subclínicas e, pelo conteúdo herniado não ser tão relevante (geralmente tecido adiposo intra-abdominal). O que acontece é que outros conteúdos abdominais podem acabar herniando, gerando emergências ou até mesmo havendo encarceramento destes conteúdos, causando abdômen agudo.
O encarceramento acontece quando uma víscera abdominal hernia e não regride mais, gerando processo inflamatório e sintomatologia a variar da víscera herniada. A própria gordura herniada pode também encarcerar, gerando uma esteatite focal que pode até mesmo evoluir para peritonite. Na imagem ao lado temos uma paciente que tinha uma hérnia inguinal negligenciada. Durante o cio, o corno uterino esquerdo protuiu na hérnia (gerando uma histerocele) e, tornou-se gravídico. O feto morreu sem chances de haver um parto eutócico. A correção da hérnia, seja ela qual for, deve ocorrer antes de tornar-se uma emergência. Ou seja: não é só uma hérnia.
temos um post dedicado a hérnias e eventrações, incluindo a descrição sugerida, para acessá-lo, clique aqui!
valorize seu exame
Estes achados são alguns dos subestimados na nossa rotina, então valorize-os, dê a importância que eles merecem e, valorize seu conhecimento como ultrassonografista, além de valorizar a saúde dos nossos pacientes. Muitos destes achados são subestimados pois os clínicos e tutores acreditam que são achados que não estão fazendo mal mas, como eles podem garantir que uma hérnia não incomoda ou dói? Ou que o paciente com infiltração gordurosa e sedimento biliar não tem desconforto ou enjoo? Então valorize estes achados e valorize seu exame!
Exclua o quanto antes do seu vocabulário a palavra "só", e diminutivos como "rinzinho", "gordurinha", "hérniazinha". Falar assim transmite a quem houve, pouca importância, algo que pode ser protelado, deixado para outro momento, que não deve ser seriamente investigado.
Quais outros achados da nossa rotina são subestimados? Se você tem exemplos pode me enviar para acrescentar e aumentar nossa lista!
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