Certamente os rins estão entre os órgãos que eu mais gosto de avaliar, e é um dos mais fáceis de se identificar quando estamos aprendendo a fazer ultrassonografia abdominal. Apesar dessa facilidade de identificação, a avaliação renal não é tão simples assim e nem as suas diversas formas de fazer as mensurações. Por isso vamos prestar atenção na hora de realizar as medidas e interpretar os valores obtidos!
planos de corte
Antes de tudo, devo esclarecer que alguns autores são divergentes em relação aos nomes dados a cada corte. As referências mais amplamente utilizadas hoje se baseiam nas nomenclaturas publicadas por Nautrup (2001) e Nyland & Mattoon (2005). Para ambos, não há divergências nas nomenclaturas dos cortes transversais, mas o corte sagital proposto por Nautrup é chamado por Nyland & Mattoon de corte dorsal. E o corte denominado sagital por Nyland & Mattoon é chamado de dorsal por Nautrup. Que confusão né? Então sempre que você for descrever um plano/corte de imagem, precisará citar qual referência utilizou. Aqui no post e na aula post, utilizo os cortes sugeridos por Nyland & Mattoon (2005).
Primeiro, precisamos ter a clareza de que nossa avaliação é bidimensional, de uma estrutura tridimensional. Então, vários planos de corte são necessários para mensurar as mais diversas medidas do rim. Peste bastante atenção no vídeo abaixo!
O corte longitudinal renal é obtido posicionando o transdutor no plano longitudinal (em relação ao paciente) e nesse corte obtemos o maior eixo do rim. Nesse corte podemos observar os contornos renais, a cortical, o limite corticomedular, parte da medular e observamos o complexo hiperecóico central (região que compreende a pelve renal e os tecidos hiperecóicos que a rodeiam).
Ainda em plano longitudinal, inclinando pouco o transdutor, obtemos o corte sagital. Neste corte o rim ainda se apresenta em seu maior eixo, mas o complexo hiperecóico central é substituído por uma linha hiperecóica, esse corte é ideal para observamos a relação corticomedular, principalmente nos cães. Os contornos, a cortical o limite corticomedular e a medular também podem ser avaliadas por esse corte.
Com o transdutor no corte longitudinal, se girarmos o transdutor 90º obtemos o corte transversal. Neste corte a pelve renal adota o formato de 'Y' e as vezes conseguimos observar a porção proximal do ureter.
Estes são os cortes mínimos para que possamos fazer as mensurações renais, e estes cortes devem estar incluídos no seu protocolo de exame. O corte sagital também pode ser realizado, quando o feixe sonoro incide no rim pela sua porção mais laterodorsal e temos a impressão de que estamos cortando o rim em duas metades iguais no plano longitudinal.
as mensurações
- comprimento renal
Tanto o corte longitudinal quanto os cortes sagital e dorsal podem ser usados para a mensuração do comprimento renal. Eu particularmente prefiro o corte longitudinal. Nestes cortes medimos seu maior eixo e essa é a principal medida renal. Várias são as referências que podem ser usadas para interpretar o comprimento renal. A grande variação dos tamanhos das raças dos cães torna as referências difíceis de serem estabelecidas (apesar de haver vários trabalhos quanto a isso). Eu particularmente prefiro a relação rim/aorta (vamos falar dessa relação em breve). Abaixo a referência que eu uso para avaliar o comprimento renal.
Particularmente para gatos, a medida do comprimento é mais útil. Apesar das mais variadas raças, existe uma pequena variação no tamanho entre elas (quando comparados aos cães). Isso proporcionou uma facilidade em estabelecer parâmetros de referência.
Percebam que para os Ragdolls, a mesma equipe de autores estabeleceu duas medidas um pouco diferentes. No trabalho a foram avaliados 56 Ragdolls saudáveis, e o tamanho renal ainda era correlacionado com a idade, peso e sexo. No trabalho b, o número de pacientes era de 15 Ragdolls, 15 British Shosthair e 11 Sphynx (um número bem menor que no estudo a, me fazendo pensar então que o a referência do estudo a possa ser mais fidedigna).
- largura e altura renal
No corte transversal podemos medir a altura e a largura renal. Apesar de eu não conhecer referências para essas medidas, elas são particularmente úteis para comparar o tamanho durante a evolução de algum processo patológico renal.
- altura da pelve renal
No corte transversal também mensuramos a altura da pelve renal. Para a realização dessa medida, mensuramos o limite da pelve com o parênquima medular até a saída ureteral. Para gatos, o valor de normalidade é de 0,0cm à 0,2cm (Tarroja et al, 2015). Já para cães, os valores vão de 0,0cm à 0,4cm, sendo essa valor máximo observado em pacientes com diurese aumentada (D'Anjou et al, 2002).
Na figura abaixo, duas imagens de corte transversal de rins, com pielectasia.
- espessura de cortical renal
em gatos
Em 2020, Yan et al publicou um artigo correlacionando algumas medidas renais com a progressão de lesões renais crônicas. O parâmetro que mais teve uma correlação linear negativa (ou seja, quanto menor a medida obtida, maior a severidade do processo, no caso, maior o aumento da creatinina) foi a espessura da cortical renal. Em seu trabalho a cortical renal podia ser mensurada tanto no corte dorsal quanto no corte transversal, mas neste último (corte transversal), os valores foram muito mais específicos e de fácil reprodução. Detalhe muito importante: neste trabalho, o limite corticomedular foi estabelecido através da localização das artérias arqueadas, utilizando do Doppler colorido. Ou seja: eles não diferenciaram a cortical pela diferença de ecogenicidade com a medular (como costumamos fazer utilizando apenas o modo B). A média, interobservador foi de 0,53cm para o rim esquerdo e 0,52cm para o rim direito, sendo 0,47cm e 0,45cm, respectivamente, o ponto de corte para determinar o adelgaçamento da cortical renal.
comparações e relações individuais
Como a variação anatômica dos cães é grande, tornando os valores de referência muito subjetivos, os pesquisadores buscam formas de comparar o tamanho renal com estruturas que não tendem a mudar de tamanho e que pertencem ao próprio indivíduo. As estruturas estudadas foram a quinta e sexta vértebras lombares e a aorta abdominal. Para ambas as técnicas, é necessário acrescentar imagens ao seu protocolo básico de exames (caso você ainda não tenha essas imagens em seu estudo). Antes disso, vamos falar de uma relação mais simples de ser estabelecida; a relação corticomedular.
- relação corticomedular
Essa é uma relação que consta no laudo de todos nós ultrassonografistas, mas sinceramente não sei dizer se todos a realizam da forma correta. Aprendemos que a relação corticomedular é de 1:1, mas já te adianto que isso depende da espécie avaliada e do corte realizado.
Nos cães, a relação corticomedular é avaliada através do corte sagitall, onde a espessura observada da superfície renal até a junção corticomedular deve ser semelhante a espessura mensurada da junção corticomedular até a linha central observada neste corte (sagital).
Já para gatos, o corte mais específico para avaliar a relação corticomedular é o transversal (como comentei anteriormente). O trabalho de Yan et al (2020) propõe que a espessura de cortical seja mensurada da superfície renal até a artéria arqueada, e a espessura da medular seja mensurada da artéria arqueada até a superfície da pelve renal. Dividindo a espessura da cortical pela espessura da medular, a relação corticomedular fica de 0,42 para o rim esquerdo e 0,44 para o rim direito (bem diferente da relação de 1:1 que aprendemos não é mesmo?).
- relação rim/vértebras lombares
A primeira vez que essa relação foi proposta ocorreu em 1971 por Finco et al, através do uso da radiografia. Não tive acesso a esse artigo e não sei dizer se a mensuração renal era feita através da ultrassonografia e posteriormente comparado com a L2 através da radiografia, ou se a mensuração do rim também era feita pela radiografia e, nem tão pouco sei dizer se fazia-se o uso do magnificador para corrigir a maximização que as imagens radiográficas sofrem.
Entretanto, Barella et al propôs em seu estudo de 2012 que a correlação fosse feita entre o comprimento renal e o comprimento de L5 ou L6, mensuradas ultrassonograficamente por transdutores lineares.
O intervalo de normalidade para essa relação é de 1,3 a 2,7.
A maior limitação dessa técnica é a presença de espondiloses, que deformam os contornos vertebrais e podem prejudicar a adequada delimitação vertebral.
O passo a passo seria: 1) medir o comprimento renal; 2) localizar a junção lombosacra para estabelecer qual corpo vertebral corresponde a L7; 3) varrer cranialmente para localizar L6 ou L5; 4) medir o comprimento de L6 ou 5, 5) dividir o comprimento renal pelo comprimento de L5 ou 6.
- relação rim/aorta
Essa medida acho muito mais fácil: necessário realizar o corte transversal da aorta na região da saída da artéria renal esquerda.
A artéria renal esquerda é fácil de identificar, por seu formato curvo (formato em gancho) logo após a adrenal esquerda. O diâmetro da aorta abdominal para a relação rim/aorta deve ser mensurado imediatamente após a saída da artéria renal esquerda, traçando uma linha reta e perpendicular ao eixo longo da aorta, unindo ambas as superfícies internas (sem pegar a parede). Ou seja, o passo a passo seria: 1) medir o comprimento renal; 2) medir o diâmetro da aorta abdominal durante a sístole; 3) dividir o comprimento renal pelo diâmetro da aorta abdominal.
Se essa relação estiver entre 5,5 e 9,1 o rim está com as dimensões preservadas. Essa relação rim/aorta foi estabelecida por Mareschal et al (2007).
Para ambas as técnicas de relação, o intervalo de normalidade é grande e mudanças sutis de tamanho podem não ser detectadas. O intervalo é particularmente grande na relação rim/aorta (em torno de 60% de variação) mas considero os 48% de variação da relação rim/L5 ou 6 também grande.
- relação cortical renal/aorta
Em 2022, Choo et al publicou um artigo colocando a relação da espessura da cortical renal com o diâmetro da aorta e, correlacionou essa relação com cães normais, com lesão renal aguda e crônica. Para essa medida, devemos manter o rim no corte sagital e, o limite corticomedular é aquele definido pelo modo B. A espessura da cortical é definida como a menor obtida da superfície renal (cápsula) até o limite corticomedular, medido no centro da pirâmide renal. O autor faz a medida em três pirâmides e divide a média pelo diâmetro da aorta.
Neste artigo, o diâmetro da aorta é mensurado na mesma porção que comentamos anteriormente, porém utilizam o corte sagital/longitudinal da aorta.
interpretando as dimensões renais
Primeiro devemos relembrar uma coisa: o tamanho renal é apenas um dos parâmetros renais e não é o único determinante para quase nenhum diagnóstico, dependendo totalmente da correlação com as demais características ultrassonográficas observadas (como contornos, ecogenicidades de cortical e medular, delimitação corticomedular, relação corticomedular, avaliação dos recessos pélvicos e pelve renal).
Poucas situações levam a diminuição do tamanho renal, e entre elas podemos citar a displasia renal, a hipoplasia renal, e a hipotrofia renal (geralmente associada a nefropatia crônica/doença renal crônica).
Já o aumento das dimensões renais pode ser observado em diversas situações, das mais comuns para as menos comuns (da minha casuística): hipertrofia compensatória (de lesão contralateral), hidronefrose, doença renal policística, compensatório (por desvio portossistêmico), neoplasias (difusas e focais), lesão renal aguda, amiloidose. Glomerulonefrites e nefropatia secundária a P.I.F. também podem aumentar as dimensões renais, mas não cheguei a observar isso excedendo os limites superiores do intervalo de referência.
No trabalho que comentei de Yan et al (2020), foi observada uma relação linear negativa entre a espessura da cortical renal dos gatos e a progressão da severidade da doença renal crônica (medida pela elevação progressiva da creatinina sérica). Quando mais adelgaçada a cortical renal, mais azotêmico era o paciente, sendo que a espessura de 0,47cm para cortical renal esquerda e 0,45cm para direita era o ponto de corte mínimo que caracterizava o adelgaçamento por nefropatia crônica. Se a cortical torna-se adelgaçada (ou seja, mais fina), proporcionalmente a relação corticomedular diminui (com relação aos valores de referência que citei antes).
Já o trabalho feito com cães por Choo et al (2023) percebeu um aumento da relação entre a espessura cortical:aorta em pacientes com injúria renal aguda, e essa relação torna-se diminuída em pacientes com doença renal crônica.
Pielectasia é o nome dado para a dilatação da pelve renal, e pode ser observada em vários processos. Já temos um post e uma aula sobre esse assunto (clique aqui para ler e assistir), mas lobo abaixo você encontra as diferentes mensurações e suas possíveis interpretações.
pontos chave
Assim como comecei esse texto, ainda insisto na tecla de que as medidas que coletamos são apenas alguns dos parâmetros que observamos nos rins. Todos os parâmetros renais tem importante relevância na interpretação da imagem e na sua conclusão diagnóstica. Outro ponto importante é que apesar de lindos, vários trabalhos contam com N relativamente pequeno (na minha opinião nada cientista). Um deles contou com N15, outro de N26... o maiorzinho foi o trabalho com os Ragdolls do Debruyn et al (2010).
Abaixo estão as referências para que vocês leiam os trabalhos e também criem esse senso crítico de analisar cada um deles e avaliar o que é possível aplicar em sua rotina. mas antes, um bônus daquele jeito que vocês adoram.
bônus
Aqui está a minha descrição dos rins (normais) com todos os parâmetros de avaliação.
Cães:
Rins tópicos; simétricos, medem Xcm esquerdo e Xcm direito (corte longitudinal); contornos bem definidos com superfície lisa; cortical homogênea e normoecóica; limite corticomedular bem definido; relação corticomedular preservada; medular homogênea e normoecóica; recessos pélvicos preservados; pelve sem alterações. Relação RE/Aorta =X RD/Aorta =X ou Relação RE/L6 = X e RD/L6 = X - eu só coloco as relações quando há uma assimetria renal grande ou alguma situação específica.
Gatos
Rins tópicos; Simétricos, medem Xcm esquerdo e Xcm direito (corte longitudinal); contornos bem definidos com superfície lisa; cortical homogênea e normoecóica, medindo Xcm em rim esquerdo e Xcm em rim direito; limite corticomedular bem definido; relação corticomedular preservada (X em rim esquerdo e X em rim direito); medular homogênea e normoecóica; recessos pélvicos preservados; pelve sem alterações.
Essa descrição utilizo quando os achados são simétricos ou quando há uma pequena diferença em algum deles que possa ser discriminada sem interferir no texto como um todo. Agora, quando um rim está totalmente diferente do outro, daí não tem jeito: descrevo tudo de um rim e depois tudo do outro rim! A descrição deles em separado no seu laudo também pode ser feita sem problema nenhum, alguns ultrassonografistas e clínicos até preferem assim.
referências
BARELLA, G. LODI, M. SABBADIN, L. A. FAVERZANI, S. A new method for ultrasonographic measurement of kidney size in a healthy dogs. Journal of Ultrasound, 2012.
CHOO, D. KIM, S-S. KWON, D. LEE, K. YOON, H. Ultrasonographic quantitative evaluation of acute and chronic renal disease using the renal cortical thickness to aorta ratio in dogs. Veterinary radiology & Ultrasound, 2022.
D'ANJOU, M. BEDARD, A. DUNN, M. E. Clinical significance of renal pelvic dilatation on ultrasound dogs and cats. Veterinary Radiology & Ultrasound, 2010.
DEBRUYN, K. PAEPE, D. DAMINET, S. COMBES, A. DUCHATEAU, L. PAREMANS, K. SAUNDERS, J. Renal dimensions at ultrasonography in healthy Ragdoll cats with normal kidney morphology: correlation with agem gender and bodyweight. Journl of Feline Medicine and Sugery, 2013.
DEBRUYN, K. PAEPE, D. DAMINET, S. COMBES, A. DUCHATEAU, L. PAREMANS, K. SAUNDERS, J. Comparison of renal ultrasonographyc measurements between healthy cats of three cats breeds: Ragdoll, Britsh Shorthair and Sphynx. Journl of Feline Medicine and Sugery, 2013.
MARESCHAL, A. D'ANJOU, M.A., MOREAU, M. ALEXANDER, K. BEAUREGARD, G. Ultrassonographic measurement of kidney-to-aorta ratio as a estimating renal size in a dogs. Veterinary Radiology & Ultrasound, 2007.
NYLAND, T.G. MATTON, J.S. Small Animals Diagnostic Ultrasound, 2002.
TARROJA, R. N. Diagnóstico ecográfico en el gato, 2015.
YAN, G. CHEN, K. WANG, H. MA, T. Relashionship between ultrasonograpgically determined renal dimensions and International Renal Interest Society stages in cats with chronic kidney disease. Journal of Veterinary Internal Medicine, 2020.
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